Aumentou para 73 o número de casos investigados contra o médico João Couto Neto, investigado por causar lesões e mutilações durante cirurgias em Novo Hamburgo, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Já são 18 familiares dizendo que pacientes morreram depois dos procedimentos. A polícia afirma que o número de vítimas pode passar de 100.
No dia 12 de dezembro, João Couto Neto foi afastado de suas funções por 180 dias após decisão judicial, sem poder atender pacientes ou se aproximar de parentes das vítimas que teria lesado.
O advogado de João Couto Neto disse que só vai se manifestar depois de ter acesso a todo o inquérito policial, o que segundo ele ainda não aconteceu.
Por nota, o Hospital Regina disse que está colaborando com a investigação. A instituição reforça que não indicou o cirurgião para nenhum paciente e que, em todos os procedimentos feitos por ele sob investigação, o médico foi escolhido pelos pacientes por convênio ou atendimento particular.
Um paciente de 52 anos que prefere não ser identificado afirma que um pequeno desconforto no umbigo o levou ao consultório do médico no Hospital Regina. O tratamento de hérnia umbilical teve o acréscimo de uma retirada de pedra na vesícula. O homem foi liberado no mesmo dia. No entanto, em casa, a recuperação foi um dos piores momentos da vida dele.
"Eu passei muito mal, uns dois dias, muito mal. Era vômito, vômito. Dor, muita dor. Dor que eu não desejo pra ninguém", afirma.
Ele voltou ao Hospital Regina e foi submetido a uma nova cirurgia por João Couto Neto. A companheira desconfiou da justificativa dada pelo médico. O cirurgião teria sugerido que um palito de dente engolido poderia ter causado a lesão no paciente.
"Me perguntou se ele tinha o hábito de mastigar palito de dente, que ele poderia ter engolido um palito e ter furado. Eu disse que ele não tinha esse hábito", conta.
Foi aí que eles decidiram mudar de médico e de hospital. "Eu me desesperei, perdi a total confiança, até porque eu já ouvia de funcionários lá dentro me incentivando a trocar, porque a fama dele dentro do hospital não era boa", diz a companheira do paciente.
OUTROS RELATOS
A motorista Simone Ferreira Campos afirma que foi operada há 11 anos por João Couto Neto para retirar um nódulo no intestino.
"Retirou do meu intestino, segundo ele me falou quando eu voltei da anestesia, 10 centímetros pra cima do nódulo e 10 centímetros pra baixo do nódulo do meu intestino, porque eu teria um câncer muito raro que ele não saberia como tratar", conta. No entanto, após uma biópsia, foi comprovado que a paciente não tinha câncer.
"Veio como endometriose. Então, não tinha nenhum tipo de câncer, nenhum problema do meu intestino", diz.
Uma técnica de enfermagem que trabalhou no Hospital Regina, em Novo Hamburgo, diz que o número de cirurgias diárias que o médico fazia chamava a atenção da equipe.
"Ele fez em uma manhã, no Hospital Regina, 27 cirurgias, uma manhã só. Não é possível, porque teria que ficar parado esperando um paciente atrás do outro na mesma mesa. Não tem como, até porque a aparelhagem não é suficiente pra isso, a instrumentação não é suficiente pra isso", afirma a profissional, que prefere não ser identificada.
A técnica fala que, em razão do grande número de reclamações, não tinha como a direção do hospital não ter conhecimento.
"Quando investigavam depois, por outros tipos de exame, era perfuração de intestino, perfuração de útero, perfuração de baço", relata.
PROTESTO DE PACIENTES E FAMILIARES
Cerca de 50 manifestantes se reuniram silenciosamente em frente ao hospital no dia 16 de dezembro durante protesto contra o médico. O aposentado Cristóvão Jacob Durante afirma que, em 2013, a esposa foi tratada pelo médico para a retirada de um câncer no estômago. Com a dilaceração do fígado na cirurgia, ela acabou perdendo muito sangue, resultando em problemas neurológicos, diz o marido.
"Hoje ela não sabe quem ela é. Não reconhece o marido de 39 anos de casada, a filha, o filho, os netos, não reconhece ninguém", diz.
Maria Terezinha dos Santos Soares, aposentada, passou pelo mesmo médico em 2020 para operar uma hérnia. "Erro médico foi, porque quando eu ganhei a legião de bactérias dentro do hospital, ele não me disse que eu tava com legião de bactéria", fala.
O comerciante Robson Fragoso também foi atendido pelo médico para tratar de uma hérnia. "Em 2015 eu fui fazer uma cirurgia de hérnia, algo muito simples, pequena, mais por estética, e aí eu acordo da cirurgia com quase 200 pontos na barriga. O doutor tinha perfurado a minha aorta", conta.
RELATO DE ENFERMEIRA
Uma enfermeira que trabalhou durante 10 anos ao lado do cirurgião João Couto Neto, no Hospital Regina, disse ter visto procedimentos fora do padrão por parte do profissional.
"Simplesmente, operou a paciente do lado errado. Era uma hérnia do lado direito, ele operou do lado esquerdo", diz a enfermeira, que prefere não ser identificada.
Segundo a enfermeira, o médico não fazia a checagem padrão antes das cirurgias com a equipe. "Antes do paciente entrar pra sala de cirurgia, o técnico de enfermagem faz um questionário com esse paciente, identificando onde é o sitio cirúrgico a ser operado. O que ocorreu neste dia também foi que não foi feito o check list por conta da pressa da produção do médico. Ele bania a equipe de fazer, então, esses questionamentos, debochava da equipe", conta.
Ela afirma que, em outra cirurgia, o médico provocou sequelas permanentes em uma paciente. "Essa situação me marcou bastante porque era uma paciente jovem, que estava em idade fértil ainda, podia ter ainda filhos e tal. Ele foi fazer uma cirurgia na região abdominal e acabou perfurando o útero da paciente. A paciente acabou tendo que retirar o útero", detalha a enfermeira.
"Eu acho que ele merece responder por toda a violência que ele causou, tanto emocionalmente quanto física nessas pessoas", afirma.
ESPOSA DE VÍTIMA
A dona de casa Ivanir de Carvalho perdeu o marido em 2018, um ano depois de ser operado por João Couto Neto no Hospital Regina para retirar uma hérnia. Durante a recuperação, ela sentiu que havia algo errado com o companheiro. "Ele gritava. Gritava dia e noite, ele não tinha mais paz. Eu procurei os médicos, procurei ele, fui atrás dele, fui no consultório, fui nos corredores atrás dele, mas não consegui. Não consegui mais falar com ele", afirma.
Ela diz ainda que pediu ajuda e registrou reclamação na ouvidoria do hospital. "Eu comecei a notar que meu marido tava com o intestino furado. E comecei a questionar. Questionei, questionei, briguei, chorei, xinguei, fui humilhada e xingada, mas não adiantou nada. Eles diziam que 'não', que era o quadro dele", afirma.
INVESTIGAÇÃO
A Polícia Civil cumpriu mandados de busca e apreensão no apartamento do cirurgião, em uma clínica particular de propriedade do médico e no Hospital Regina. A Justiça negou o pedido de prisão preventiva do médico.
Conforme o delegado responsável pela investigação, Tarcísio Lobato Kaltback, o médico, que se apresenta como especialista na realização de cirurgias do aparelho digestivo, é responsável por "intervenções desastrosas e desumanidade no tratamento pós-operatório, com descaso total quanto à saúde". "Uma vítima, por exemplo, ia fazer a correção de uma hérnia e tinha o intestino perfurado. Uma outra vítima ia fazer uma cirurgia de uma pedra na vesícula e tinha o fígado cortado", afirma.
Entre os relatos coletados pela polícia, há depoimentos que apontam casos de infecção generalizada, trombose, embolia pulmonar e até mesmo demência após a realização de procedimentos realizados pelo cirurgião.