Por Katharina Gurgel
Moro num Residencial, no primeiro andar. A janela da cozinha do meu apartamento dá diretamente para a rua de trás de onde moramos.
Essa semana, estava fazendo um café à tardinha (um ritual que agora na pandemia ficou ainda mais fixo na minha vida), e enquanto coava o café próxima da janela, ouvi uma conversa que ecoava da rua e parava bem nos meus ouvidos.
O cheiro do café já perfumava a casa, e aquela conversa foi me tomando de uma forma, que tive que ir até a área de serviço, para ver quais eram os donos daquelas vozes fortes e confidentes.
Vi que eram dois homens, trabalhadores da Prefeitura, dessas empresas terceirizadas de limpeza urbana.
Tinham uns quarenta e poucos anos, os dois; usavam calças verdes, camisas brancas de malha com mangas longas, botinas e aqueles chapéus que trazem abas na parte de trás para proteção do sol. Vi que eles alternavam o trabalho, a função. Em um determinado momento, um varria a rua e juntava o lixo e o mato, enquanto o outro levava o carrinho de mão cheio até o final da rua, empilhando num monte, encostado no canteiro.
Enquanto varriam, limpavam a rua, tinham uma conversa tão interessante que fez com que eu tomasse toda a minha xícara de café recém passado em pé, perto da grade da minha área de serviço, encostada na minha máquina de lavar.
Que programação maravilhosa foi aquela!
- Pois eu prometi ao meu filho que ainda vou com ele assistir a um jogo do flamengo lá no Maracanã. Eu vou! - Dizia o homem (talvez o mais novo) que tinha o chapéu com estampa militar.
- O que eu quero mesmo, mesmo, é que essa doença acabe logo. Eu ainda encontro alguns amigos pra tomar um de vez em quando, mas tenho medo dessa desgraça me pegar. A mulher fica doida quando encontro um ou outro. Mas o que eu queria mesmo era encontrar os amigos todos, bater uma bola na sinuca e voltar pra casa só quando as pernas começassem a trocar, como fazia antigamente. - O outro falava, lamentando o isolamento boêmio que estava sendo obrigado a fazer.
- Não, homem, dei um tempo dessas farras pesadas. O que a minha mulher já passou comigo, eu não sei como ela aguenta! Eu gosto da minha véia. Quero mais errar não! - Confessava o de chapéu verde, do mesmo tecido da calça.
- A gente vai ficando mais velho e vai querendo ficar mais e mais tranquilo, né? Eu sei como é! Mas ainda queria a minha farra de antigamente. Kkkkkkkkk
- Os dois abriram foi uma gaitada nessa hora.
Já estavam quase na metade da limpeza da rua, meu café já no finzinho, e o papo dos dois seguia pela tarde.
- Agora olhe, o que a gente tem mesmo que agradecer é o trabalho, né não? Você não viu o quanto de gente sem trabalho, as firmas demitindo, um monte de homem agoniado vendo os filhos com fome... a gente é mesmo abençoado. - Um falava enquanto colocava a última pá de lixo no carrinho de mão já bem cheio.
- Certeza. Conheço gente que tá ficando doido de verdade, sem dinheiro pra nada. A gente é abençoado mesmo. Olhe a gente aqui, ó, conversando, numa boa, com a certeza de um salário no final do mês. Graças a Deus!
- Graças a Deus mesmo! Vai, vai logo levar essa carrada, pra gente descer mais na rua.
Depois dessa última carrada, resolvi voltar pra cozinha e tomar mais café. Tinha me inspirado. O simples é mesmo maravilhoso, e muito, muito valioso!
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