Por Jean Paul Prates, especialista em recursos naturais e energia, Senador da República (2019–2023) e presidente da Petrobrás (2023–2024).
Ao longo dos últimos dois anos, tenho acompanhado a desafortunada odisseia do PL 576/21, do qual sou autor, pelos turbulentos mares que sempre caracterizam a tramitação de marcos setoriais relevantes no Congresso e no Governo.
Destinado originalmente a apenas regular a titularidade do uso dos espaços oceânicos brasileiros para geração de energia a partir do vento, ondas, marés, correntes marítimas e outras forças, este projeto de lei estruturante e inovadora acabou servindo como penduricalho para o emaranhando de interesses, alguns legítimos e outros nem tanto, do setor de energia do Brasil.
Apelidados de “jabutis”, esses enxertos oportunistas em uma proposição legislativa necessária para manter o nosso país na vanguarda da transformação energética mundial, demonstra que ainda não convencemos a todos que a transformação no setor energético brasileiro depende de cada um de nós, principalmente dos detentores de poder e da elite econômica.
Aberta a porteira na Câmara, foram se dependurando quelônios legislativos de toda espécie, transformando o projeto de lei original em uma proposição nociva para para o meio ambiente, para o consumidor e para o mercado. Lideranças governamentais e ministros deram ao menos a impressão de torcer e se esforçar pela retirada destes abcessos legislativos, mas os diversos interesses pareceram prevalecer e fazê-los desistir em prol de um futuro momento em que o Presidente Lula, sempre ele, terá que arcar com o ônus do veto.
O perfil da geração brasileira vem mudando muito nas últimas décadas. Tanto a gestão do regime hídrico quanto as intermitências (sazonal e diária) das fontes eólica e solar, são perfeitamente administráveis no âmbito da regulação setorial a cargo da agência reguladora do setor elétrico (ANEEL) e do controle de despachos realizado pelo Operador Nacional do Sistema (ONS). Leis federais só devem ser utilizadas para criar arcabouços legais estruturantes ou transformadores, cuja deliberação requer tempo de discussão confortável, respaldo técnico-econômico neutro e tratamento igualitário para ouvir todas as fontes, consumidores e populações afetadas.
É totalmente descabida a inserção, no PL da Energia Offshore, da compulsoriedade de operação. das termelétricas em 70% do ano até 2050. Tecnicamente, não temos essa necessidade, mesmo considerando a ocorrência de períodos de seca. Talvez um incentivo a incrementar a entrada de novas térmicas ainda se justifique na região Norte, historicamente dependente de pesados subsídios para utilização de diesel na geração elétrica. Mesmo assim, salta aos olhos o exagero da elasticidade do prazo: até 2050. Um exemplo evidente da ação e sucesso de grupos específicos que atuam reiterada e ilimitadamente até conquistar privilégios incompatíveis com um mercado eficiente e sustentável de energia.
Descabido também é o uso de enxerto legislativo para incentivar as pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), que são usinas hidrelétricas de 5 a 30 MW. Mesmo se tratando de fonte renovável, o seu nível de potência há tempos não justifica mais o seu custo, ressalvadas honrosas excessões. Desconfio que o melhor a fazer seria o governo prover algum tipo de apoio às PCHs já construídas, mesmo sabendo que temos cerca de 500 PCHs já instaladas no Brasil, o que não alcança sequer 3% de todo o potencial disponível de nossas usinas geradoras. Mais um caso de discussão que deve ser conduzida sem pressa e em outra lei, ou regulamento.
Outro enxerto extremamente extemporâneo e anacrônico refere-se à prorrogação dos subsídios à geração distribuída, majoritariamente composta das instalações solares-fotovoltaicas em residências, comércios e indústrias. Como em todos os países que já passaram pelo ciclo de consolidação da microgeração, estes subsídios foram gradualmente sendo eliminados e hoje já inexistem. O setor se tornou um dos mais intensos em empregos e empreendedorismo, o que é de se reconhecer. Mas a conversão para GD infelizmente não se dá de forma socialmente justa, iniciando-se pelos mais ricos e maiores consumidores, deixando os menos favorecidos e menores literalmente “na sombra”. Com isso, o alastramento desorganizado da GD provocou a crise do sistema de distribuição local de energia, que, para piorar, se dá sob concessão dos Estados e não da União. Não há harmonização alguma quanto à revisão do papel e das possíveis receitas das distribuidoras de energia, e, com isso, está evidente a falência estrutural delas, das maiores às menores, em todo o País. A complexidade multi-jurisdicional e técnica deste tema obriga a que o assunto seja tratado em lei especial, com ampla discussão e todos ouvidos, em vez de mais um enxerto legislativo sorrateiro.
Há outros jabutis na nova lei: aparentemente uma colcha de retalhos finalmente agora consolidados, para o bem ou para o mal, num único artigo apelidado de “jabutão”. Ou seja: agora o Presidente Lula terá a decisão sobre todos ou nenhum, em um único veto.
Para além de conspurcar indelevelmente uma lei cujo único fim seria o de regular o uso dos mares brasileiros para geração de energia, os chamados “jabutis” são um tiro no pé do Brasil quanto ao seu almejado protagonismo mundial como líder da transição energética global, em pleno ano em que sediará a COP30.