O pedreiro Francisco de Assis da Silva, de 62 anos, residente na antiga Favela do Tranquilim, zona leste de Mossoró, pedalou 404 quilômetros, entre Mossoró/RN e Cerro Corá, numa bicicleta com mais de 15 anos de uso, já sem os freios, para tirar segunda via do Registro de Nascimento, e, assim, fazer o cadastro e receber uma casa nova no Conjunto Jardim das Palmeiras.
Este conjunto foi construído na região leste pela Prefeitura Municipal de Mossoró com recursos do programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal, liberados através da Caixa Econômica, para erradicar a Favela do Tranquilim, onde Francisco mora. Os moradores que estão com os documentos em dia já receberam suas casas e se mudaram semana passada.
No caso de Francisco, a casa não foi entregue. Ele não tinha nenhum documento pessoal. “Roubaram meus documentos (na Favela do Tranquilim) há cerca de 1 ano. Eu até pensei em tirar a casa no nome da vizinha, mas a ‘muié’ da secretaria disse que não podia”, revela o pedreiro, mostrando o barraco sem porta, sem janela e paredes caindo e teto destelhando.
Café puro, um sonho e 404 quilômetros à frente numa bicicleta sem freios
Francisco de Assis, que trabalha de pedreiro fazendo um muro na Avenida Rio Branco, conta que segunda-feira, dia 4, foi na Secretaria de Desenvolvimento Social para receber a casa nova no Jardim das Palmeiras e lá foi informado que precisava refazer o cadastro, pois o que havia feito há vários anos não valia mais. “Só que meus documentos foram todos roubados”.
Ele conta que havia tomado uma xícara de café puro e mais nada, ao amanhecer de segunda-feira, 4, e mesmo sem almoçar ao meio-dia, pegou a bicicleta, amarramou uma garrafa com água no assento de passageiro, e partiu na direção de Cerro Corá, sua terra natal, para tirar a segunda via da Certidão de Nascimento e com este documento fazer todos os outros. “A mentalidade era ganhar a casa”, revela.
Foto: Carlos Paiva
A primeira parada foi em Fernando Pedrosa, num posto de combustíveis, distante 116 km de Mossoró. Pedalou 116 km com fome. Conta que 2 frentistas (não lembrou os nomes) lhe deram um canto para dormir e comida. Ao amanhecer, tomou uma xícara de café puro e mais nada e voltou a pedalar na BR 304 na direção de Cerro Corá, de onde havia saído no ano de 1971.
A segunda parada foi no município de Bodó, 190 km de Mossoró. Já era início da tarde de terça-feira, 5. “Um homem que havia passado por mim na estrada me deu uma quentinha. Deu até R$ 20,00, você acredita?”, conta Francisco de Assis, dizendo que em seguida foi até a casa de um conhecido, chamado Evaristo, onde dormiu a noite de terça-feira.
Ao amanhecer de quarta-feira, 6, Francisco de Assis tomou uma xícara de café puro e mais nada e encarou a subida da serra de Cerro Corá. Não deu para subir pedalando. “Eu subi a serra empurrando a bicicleta”, revela o pedreiro, admitindo estar exausto.
Ao chegar no Cartório (202 km de Mossoró), os funcionários, a princípio, não encontraram o registro de nascimento de Francisco de Assis, mas uma antiga funcionária do cartório, chamada Maria do Carmo, conseguiu localizar e fez o documento.
“Fizeram a segunda via do Registro de Nascimento (mostrou numa bolsa preta, já bem velha, que ele não tira debaixo do braço), paguei R$ 64,00 e embarquei de volta". Ele havia saído de Mossoró com R$ 72,00 e não podia gastar um centavo, pois este era o valor que havia sido informado que ia custar a segunda via do registro de nascimento no Cartório de Cerro Corá.
Com R$ 28 reais no bolso (R$ 8 que sobrou e 20 que havia ganhado no dia anterior), no retorno, passou direto por Bodó. Um descanso em movimento, pois o primeiro trecho do caminho de volta é uma longa descida, perigosa, por sinal, principalmente para quem se deslocava numa bicicleta sem freios. Veio ‘controlando’ na descida. “Foi fácil. Tenho costume, né”, explica o pedreiro de 62 anos como desceu a serra de Cerro Corá.
Parou naquelas queijeiras no caminho, onde comprou um pedaço de bolo por R$ 2,50 e comeu com café puro. Seguiu caminho e só parou para dormir numa comunidade chamada São José da Passagem. Disse que o dono de uma casa lhe ofereceu feijão com ovos para jantar. Ele preferiu não dizer onde e como dormiu. Disse que foi muito bem tratado pelas pessoas.
Ao amanhecer de quinta-feira, 7, Francisco de Assis voltou a pedalar na BR 304, com destino a Mossoró. Em Assú, entrou na cidade e foi até o Mercado Público, onde comeu outro pedaço de bolo com uma xícara de café puro, por ser mais em conta do que nos restaurantes nas margens da BR. “Paguei R$ 2,00 e voltei para a estrada”, conta.
Já perto de Zé da Volta, Francisco de Assis disse que parou numa barraca de frutas para beber água e conheceu um homem que prometeu ajudá-lo em Mossoró a conseguir a casa. Mostrou um envelope amarelo com o nome dele (foto): Carlos Paiva. O MOSSORÓ HOJE o identificou. Carlos Paiva é o coordenador da Defesa Civil de Mossoró. “Ele é jornalista, é?”, pergunta Francisco de Assis a repórter. “Não. É coordenador da Defesa Civil de Mossoró”, esclareceu a reportagem.
Alegria ao reencontrar os seus animais de estimação: o jumento Canindé e o Galo Marronzim
Francisco de Assis chegou a Mossoró por volta das 18h de quinta-feira, 7. Disse que foi a maior alegria do mundo ver que os amigos cuidaram bem do seu galo de estimação, o Marrozim, e também o jegue Canindé. Na manhã de sexta-feira, 8, deixou tudo no barraco, inclusive Canindé e Marronzim, foi de bicicleta tirar a identidade (mostrou) na Central do Cidadão.
Não deu tempo tirar o título de eleitor e nem o CPF, o que vai fazer nesta segunda-feira, 11, e logo em seguida fazer o cadastro na Secretaria de Desenvolvimento Social, para assim, finalmente, conseguir receber sua casa no Conjunto Jardim das Palmeiras. Este foi o seu foco desde o início. O sonho da casa própria.
Ele não revelou, porém, levando em consideração a distância e o tempo e às vezes que ele se alimentou no caminho, Francisco de Assis passou fome e sede no trecho de ida e volta a Cerro Corá. Dormiu ao relento e pedalou à noite na BR 304. Ele não reclama disto. Parece já ser acostumado. Aliás, nem fala sobre o assunto. Prefere agradecer a quem lhe ajudou, sejam alguns que lhe ofereceram água e/ou alimento.
Francisco de Assis, que é mais conhecido por Cerro Corá, recebeu a reportagem do MOSSORÓ HOJE na manhã deste sábado, 9, dentro da Favela do Tranquilim, local que fez questão de mostrar os escombros, parte em chamas (VIDEO), e apresentar aos 8 moradores que restam (Foto). Vestia a mesma roupa que viajou a Cerro Corá de bicicleta, um camisa pólo surrada, uma calça rasgada e sandálias. Um morador vizinho disse acreditar que a única roupa que lhe restou é a que veste. O cenário no que restou da favela é de medo.
Moradores confirmam que Francisco gosta de ajudar os vizinhos
Tem mãos calejadas e rosto com as marcas do tempo. Apesar disto, simpático e demonstrando uma vitalidade incrível para quem já tem 62 anos de vida e pelo menos 50 de trabalho pesado. “Aqui não existe inimizade com ele. É um homem de bem, que queremos todos muito bem a ele porque ajuda a todos que pode”, diz o vizinho Manoel Amaro da Silva, de 57 anos.
Cerro Corá contou que chegou em Mossoró aos 17 anos para trabalhar na antiga Maisa. Ele não tem pai, mãe, irmãos e chegou a se casar, mas a mulher vivia, segundo ele, de “bandaeira”, bebendo e usando drogas e ele teria se afastado dela por estas razões. Sobre a família na terra natal, Cerro Corá disse que não tem mais.
Companhia inseparável mesmo, Cerro Corá conta que tem dois: o jegue Canindé e o galo Marronzim. O jegue Canindé e Marronzim foram alimentados pelos vizinhos de barracos enquanto ela pedalava até sua cidade natal e retornava. “Alimentamos o galo de estimação dele e também o jumento Canindé”, confirma a dona de casa Ana Pereira da Silva.
Marronzim foi roubado durante desmonte do Tranquilim
Quando retornou da viagem de 404 quilômetros de bicicleta ficou muito preocupado, porque Canindé não teria se alimentado direito, “mas já voltou a comer”, diz Cerro Corá abrindo o sorriso e mostrando orgulhoso que o animal é novo e nem as mudas de dentes aconteceram (foto acima).
Quando perguntado pelo galinho Marronzim, Cerro Corá baixou a cabeça e se afastou (estava com os olhos marejando) resmungando com a voz embaraçada. A vizinha Ana Pereira da Silva foi quem revelou o que aconteceu.
“Quando ele chegou de viagem, entregamos tudo a ele. Aí ele foi tirar os documentos e roubaram o galinho dele. Ele ficou muito abalado”, relata. Cerro Corá disse que não ficou chateado por terem levado as ferramentas de trabalho dele (reconhece que vai fazer falta), mas que chorou quando não encontrou o Marronzim no canto que deixou.
Cerro Corá parou a entrevista três vezes para pedir ajuda para um bebê de 3 meses, para um jovem de 24 anos desempregado e pai de dois filhos, e, também, para o vizinho que estava com o barraco ameaçado pelo fogo. Ele contou que quando a Maísa fechou há vários anos veio Morar em Mossoró e trabalhar de servente e agora de pedreiro.
Cerro Corá ou Veio, como às vezes o chamam carinhosamente, é vítima de um sistema econômico escravista e, para quem não avança nos estudos, tem poucas chances de conseguir evoluir financeiramente, ter sua própria casa. Especialmente ele, que, morando num local onde os vizinhos são humildes, e não se negam a compartilhar o que ganham como pedreiro.
Devido ter que trabalhar muito cedo para sobreviver, Cerro Corá diz que não tem estudos, mas mostrou com muito orgulho a assinatura no Registro Geral, que fez nesta sexta-feira, 8, na Central do Cidadão, em Mossoró, após chegar com o Certidão de Nascimento que tirou no Cartório de Cerro Corá terça-feira, 5, passada. O próximo documento que vai tirar o é o CPF e o Título e depois fazer o cadastro para receber a sonhada casa.
Para Carlos Paiva, Francisco é um caso raro de fé, de luta e humildade
Para Carlos Paiva, chefe da Defesa Civil de Mossoró, “é uma história de luta e de vida honesta, descente e de como o povo brasileiro tem fibra, garra e luta pelos seus sonhos”, diz Carlos Paiva, acrescentando: "não sei o que se passa com aquele homem, brasileiro simples, de nome Francisco, batalhador, honesto que estava pedalando em busca de seu sonho, uma casa”.
“Seu Francisco, é um exemplo raro de fé, de luta e humildade na busca de seus sonhos. E não quero nem de perto dizer que ele podia ser um aproveitador, um preguiçoso, como tantos homens e mulheres jovens que preferem roubar, matar e destruir a vida dos outros. A Seu Francisco, minhas homenagens e por pessoas como ele que digo "ainda vale a pena persistir". É o tipo que nos dá prazer em ajudá-lo, não porque ele precisa, mas porque ele merece", finaliza Carlos Paiva, chefe da Defesa Civil de Mossoró, em contato com MOSSORÓ HOJE.
Em contato com o MOSSORÓ HOJE, a assessoria de Comunicação da Prefeitura de Mossoró informou que a ordem do prefeito Francisco José Junior é atender a todos os moradores da Favela do Tranquilin. No caso de Francisco de Assis, informa que vai analisar o caso tão logo chegue às mãos dos profissionais da Secretaria de Desenvolvimento Social nesta semana.
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